Pingo doce, último dia do ano e último dia antes da subida generalizada dos preços. Quando chego, já não há carrinhos nem cestinhos para pôr as compras, pelo que carrego os meus pobres haveres nos sacos da própria loja, aqueles que levarei, depois, para casa.
Por todo o lado, como diria o outro, «o expoente máximo da loucura»: o povo a açambarcar o que pode como se não houvesse amanhã (e, de certa forma, não há). Enquanto espero numa fila gigantesca, aproveito para me inteirar dos pormenores do casamento secreto da fadista mariza, mas rapidamente percebo que, lá à frente, nas inatingíveis caixas, se passam coisas bem mais interessantes que nas revistas de cusquices.
Segundo me contou o senhor da frente, com detalhe e sem que eu lhe tenha pedido, alguns membros de um grande clã cigano que andava às compras no supermercado tentaram passar pela caixa com uma grande quantidade de bens «não declarados». A tentativa de gamanço não passou despercebida aos polícias (sim, polícias, nem eram seguranças) que por aí andavam e os detiveram prontamente. Gritos, choros, emoção. Isto podia ter ficado por aqui, não fosse a mulher atrás de mim encetar um monólogo em que, basicamente, se insurgia contra todo o mundo.
Sem a ver e só com base no seu discurso, dei-lhe uns 270 anos, mas quando finalmente a vislumbrei, percebi que não devia ter mais de 50. Sempre sozinha, falava como quem dialoga consigo mesmo: «ACABOU O TEMPO DOS EMIGRANTES E DA ESQUERDA!» era um dos seus slogans favoritos, que repetia como um refrão de cantiga. Mas não se riam, que sobrava para todos: os «maricas» que deviam ser «deportados»; os estrangeiros, que «nem são portugueses nem europeus», a voltar já para as suas terras; os não alfacinhas de volta à província, também. «Muitos dos que aqui estão nem são do Sul, DA CAPITAL! São lá da parvalheira do norte», dizia, com asco. Não faltou, naturalmente, um dos meus lugares-comuns favoritos - «por isso é que este país não anda para a frente» - nem um desejo forte de que toda «esta maralha» abandonasse a cidade e o país, deixando-a naturalmente sozinha em casa, com os ratos (que gente deste calibre nem um gatito deve ter).
Ainda tive esperança, mas nem o facto de a empregada da caixa - que por seu turno se ria da agitação dos «assaltos» - ser negra estancou a verborreia da mulher. Enquanto eu voltava a meter as minhas compras nos sacos, a pequenita fábrica de ódio pagou o único artigo que levava: um saquinho de uvas passas (seriam nacionais?), por 1 euro e 29 cêntimos. Aposto que todos os seus 12 desejos serão contra alguém.
Em tempos que já lá vão tinha-me virado para trás e pedido à mulher que apresentasse o certificado de pureza étnica (o que quer que isso possa ser num país destes), mas se há coisa que a idade me ensinou a valorizar é a integridade física. Lá fora, uma das ciganas dizia ao polícia que ele não lhe podia «bateriiiiii», enquanto o que parecia ser o chefe do clã tentava ir-se embora, desejando ao agente «um feliz ano!» e dando-lhe pancadinhas nas costas. Quando vim embora estava a chegar um carro da polícia. Só tenho pena que, quando fazem os anúncios do pingo doce, nunca apanhem estes dias de festa.
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